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Esse blog é destinado a promover o debate de temas culturais e sociais, além de divulgar as ações realizadas por jovens moradores da comunidade São Remo, no bairro do Butantã (SP).

domingo, janeiro 29, 2006

INTERNET: O MEIO SEM A MENSAGEM

Em entrevista à FOLHA, Vinton Cerf, que idealizou a internet, defende a eficiência da rede, mas alerta que as fraudes ameaçam escapar ao controle em um futuro próximo

Daniel Buarque (*)

Evoluir é preciso. Para Vinton Cerf, idealizador da internet e criador dos protocolos que deram origem a toda a rede de computadores tal como existe hoje, não há sombra de falência do projeto, apesar dos atuais entraves envolvendo a Wikipedia ou o Google, empresa em que trabalha hoje. Para ele, a internet continua sendo um meio de comunicação capaz de sediar modelos de compartilhamento de informações - como fora pensada originalmente. Porém é crescente e mais importante, diz, a preocupação com segurança, confidencialidade, integridade da comunicação e outras práticas abusivas. Ele acredita que a internet precisa evoluir para desenvolver novas formas de tratar tais questões. "A internet é o que o mundo faz dela. Não podemos ditar a forma como ela será usada em todos os lugares."

Cerf foi autor, em 1973, com Robert Cohn, dos estudos originais que projetaram a internet. Hoje ele é "Chief Internet Evangelist" (algo como gerente evangelista de internet) do Google, responsável, por encorajar a expansão da rede em escala global e uma das principais faces públicas da empresa. Na entrevista abaixo, concedida à Folha em dois tempos, por telefone e e-mail, ele ressalta o empenho das pessoas envolvidas no desenvolvimento de tecnologias e usos da internet e aponta que 99% das aplicações a serem usadas no futuro ainda não foram inventadas. Cerf indica um certo crescimento de alguns tipos de atividade fraudulenta, por conta da internet, mas diz que esse é um comportamento humano, havendo ou não a rede de computadores. Ele admite que estamos nos tornando dependentes e cada vez mais frágeis, graças ao desenvolvimento da internet. "Eu tenho este cenário de pesadelo, num futuro frágil, em que o sistema cada vez mais complexo com milhões de softwares, interagindo uns com os outros, sempre de formas inovadoras."

Folha - Como as recentes restrições ao Google na China, as imposições do governo dos EUA e a restrição às informações na Wikipedia da Alemanha afetam a liberdade de expressão?
Vinton Cerf - A internet é o que o mundo faz dela, e nós realmente não podemos ditar como ela deve ser usada em todos os lugares. Nós podemos apenas fazer o melhor para tornar o meio tão aberto quanto os usuários permitam que ele seja.

Folha - Chegamos ao fim da internet como era pensada na última década, como um universo democrático, de informações circulando livremente?
Cerf - Espero que esse não seja o caso. A internet sempre foi pensada como um sistema capaz de sediar uma vasta gama de modelos de compartilhamento de informações.
Está claro que nem todos os países e sociedades compartilham do mesmo ponto de vista, de que toda informação deveria estar disponível livremente. Há preocupação sobre a exposição de menores a material que deveria ser apenas para adultos ou talvez nem mesmo permitido na rede. Há preocupação de que alguns tipos de informação podem trazer problemas políticos. E também existe a preocupação com softwares malignos, que violam a privacidade de cidadãos ou os prejudicam financeiramente ou de outras formas.

Folha - A internet está passando por uma fase de ruptura?
Cerf - A internet continua a servir um número crescente de usuários. Estimativas atuais dão conta de 1 bilhão de pessoas conectadas. Entretanto as aplicações da internet só evoluíram com o tempo. Como empresas e usuários individuais entram nesse ambiente virtual, há uma preocupação crescente com a segurança, confidencialidade, integridade da comunicação e práticas abusivas, incluindo spam e vários tipos de software maliciosos. Conseqüentemente, há um grande interesse em evoluir a internet para satisfazer essas novas ou expandidas demandas. Ao mesmo tempo em que digo que a internet não está "quebrada" ou falida, não há nenhuma dúvida de que ela precisa evoluir e desenvolver novas funcionalidades para satisfazer necessidades.

Folha - Como o Google trabalha para controlar a qualidade das informações que oferece em suas ferramentas de busca?
Cerf - O Google não garante o conteúdo que descobre na internet. Seus algoritmos, que fazem o ranking do material que ele apresenta, são intencionalmente preparados para dar destaque ao que parece ser mais relevante. Usamos vários tipos de técnicas para fazer essa identificação e essa classificação, mas não temos meios automáticos que garantam a confiabilidade da informação descoberta. As ferramentas de busca do Google permitem que os usuários restrinjam sua busca em domínios especificados (por exemplo: governo, textos acadêmicos, livros etc.), numa tentativa de oferecer mais altos graus de relevância nas respostas às buscas.

Folha - É possível controlar a qualidade das informações na internet, evitando abusos?
Cerf - Bem, o conceito que uso, de "má informação" é relativo e depende de quem a está utilizando, podendo achar útil ou não. É difícil falar disso em termos absolutos. Algumas informações são rejeitadas internacionalmente, como pornografia infantil, mas é mais difícil controlar quando se trata de informações que não são reprovadas universalmente e apontam apenas opiniões divergentes. Nesse caso, da minha perspectiva norte-americana, fazemos uma defesa muito forte da liberdade de expressão, originalmente criada para proteger o livre discurso político, mas que ganhou uma visão mais abrangente e inclui qualquer tipo de discurso. Costumo lembrar, entretanto, que o direito à expressão não garante que ninguém deva ouvi-lo. Não posso dizer o quanto eu me importo com fazer com que o pensamento crítico se torne parte da formação das crianças para que tenhamos adultos capazes de distinguir uma informação de qualidade da informação inútil. Isso não apenas na internet, mas em todas as fontes de informação, sejam revistas, jornais, televisão, cinema, rádio, além de nossos parentes e amigos. Acho que impor controle governamental ao conteúdo das páginas na rede seria tecnicamente muito difícil, além de moralmente condenável.

Folha - Com o crescimento da internet, pode-se dizer que estamos nos tornando cada vez mais frágeis?
Cerf - Tenho esse cenário de pesadelo, num futuro frágil, de um sistema cada vez mais complexo com milhões de softwares, interagindo uns com os outros, sempre de formas inovadoras. Posso dizer que os cientistas que estão pesquisando os sistemas de computadores em todo o mundo, as pesquisas acadêmicas, precisam se dedicar muito mais de que têm trabalhado recentemente para construir sistemas mais confiáveis e resistentes, menos frágeis à invasão e à fraude. Apesar de todos os ataques, nesses quase 30 anos da internet, ainda não houve nenhum problema de segurança que afetasse de forma grave a sociedade, mas isso não deve evitar que se trabalhe duro para criar sistemas mais seguros. Essa deveria ser nossa meta para este novo século.

Folha - Além da censura, a privacidade e o anonimato na internet também podem ser um problema?
Cerf - Anonimato é muitas vezes uma ferramenta importante, mas, em outras vezes, apenas algo que facilita o uso abusivo da rede. A divulgação anônima de informações na rede é muito difícil de controlar, e a melhor forma de combatê-la é colocar sua própria informação na rede, para ir contra o que quer que esteja sendo dito. A solução para combater a má informação é ter cada vez mais informações on-line. Por outro lado, o anonimato pode ser muito importante, pois encoraja pessoas a apontarem abusos e problemas, especialmente quando se trata de questões ligadas ao governo.

Folha - O que o sr. acha da internet como invenção?
Cerf - É muito empolgante. O que mais me impressiona é que esse trabalho foi reaproveitado por outras pessoas que também se empolgaram rapidamente com a idéia de conectar computadores de todo o mundo, de compartilhar informação da forma como fazemos hoje, de ser uma plataforma para todos os tipos de comunicação digital, não só mensagens de texto e páginas na internet mas também voz e vídeo. É um ambiente riquíssimo, e provavelmente 99% das aplicações que serão usadas na rede no futuro ainda nem foram inventadas. Estamos ainda nos estágios iniciais da compreensão sobre o que podemos fazer com esse tipo de recurso.

Folha - Nos anos 70, quando a tecnologia foi inventada, o sr. imaginava tais desdobramentos?
Cerf - (Rindo) Eu gostaria de poder dizer que "claro que sim, e tudo que você vê hoje eu já tinha em mente", mas estaria mentindo. Acho que nosso entendimento coletivo do poder da web apareceu enquanto ele crescia, enquanto se tornava capaz de assumir novas funções, aumentar a velocidade. Quando começamos, fazíamos conexões a 50 mil bits por segundo, hoje não é incomum ver conexões de 10 bilhões de bits por segundo e já houve demonstrações de conexões de 40 bilhões de bits por segundo. Dá para ver que as coisas mudaram em vários sentidos. Similarmente, quando o sistema começou a operar, em 1º de janeiro de 1983, havia 400 computadores conectados. Hoje acho que podemos encontrar cerca de 1 bilhão de usuários. No intervalo de 20 anos, o sistema cresceu numa proporção inimaginável.

Folha - Nesses diferentes desenvolvimentos da tecnologia, o que mais o surpreendeu?
Cerf - Com o tempo, ainda virão muitos outros dispositivos de uso dessa tecnologia. Hoje em dia, uma das tecnologias que têm se desenvolvido mais é a de telefonia móvel. O sistema de telefonia mais de que duplicou nos últimos cinco ou seis anos por causa da telefonia sem fio e por celular, e todos esse telefones, com o tempo, vão estar ligados também por meio de conexões de internet. Então veremos um aumento exponencial no número de pessoas que têm acesso à internet.

Folha - E o que o desapontou?
Cerf - Muitas coisas, de fato. Uma delas é quase inescapável. Quando se entra na www (World Wide Web), se encontra uma quantidade enorme de informações -que não poderiam ser encontradas sem que companhias como o Google ajudassem- e se descobre que há muita informação ruim na rede, seja material sem valor ou mesmo divulgação de informações que representam mal o tema em questão, o que pode confundir ainda mais quem está navegando. De qualquer forma, isso é um resultado paralelo ao fato de a população em geral ter acesso à rede e ter a possibilidade de divulgar o que quiser por meio dela. Não sei, portanto, se se trata de um desapontamento com a internet ou de uma decepção com a sociedade global e sua pouca habilidade em compreender e divulgar as coisas. Começamos a ver fraudes e outras formas de abuso como o spam, e-mail comercial não-solicitado, coisas desse tipo. E essas coisas me parecem quase um aspecto inescapável do desenvolvimento da civilização moderna. Acho que teria que dizer que fraudes já existiam 10 mil anos atrás, em sociedades mais primitivas, não são um fenômeno novo, embora tenham se tornado globais com a internet.

Folha - Qual é a principal questão relacionada à segurança na internet?
Cerf - Acho que o maior problema hoje é a fraqueza dos sistemas operacionais de segurança em uso na rede -com base no Windows, Linux, Macintosh ou qualquer outro. Todos têm muitas falhas que podem ser exploradas e não apenas por especialistas. Há ferramentas que facilitam o acesso a essas falhas mesmo a pessoas que não entendem tanto do sistema operacional dos computadores na rede. Temos também problemas de autenticação. É difícil identificar as partes numa transação comercial. São necessárias melhores ferramentas de autenticação para evitar esse tipo de abuso. O spam é hoje um fenômeno econômico. Como o envio de mensagens eletrônicas é gratuito, as pessoas podem enviar quantidades imensas de anúncios por meio de spam, e, se apenas uma parcela ínfima responder, já vale o trabalho e cobre o custo. Não tenho uma solução simples para esse problema, apesar de achar que identificar as fontes das mensagens ajudaria.

Folha - Dificulta o fato de não haver uma regulamentação internacional para um fenômeno tão global?
Cerf - É um ponto importante. Precisamos de um padrão internacional de legislação que ajude na aplicação da lei em base internacional. Temos a Interpol, mas, além desses corpos internacionais de coordenação e aplicação da lei, também é preciso haver alguma compatibilidade de lei em países diferentes. O spam é um problema internacional. Por exemplo, se todos os países tomassem uma posição semelhante, proibindo-o, as pessoas que enviassem mensagens por spam de um país para outro poderiam ser processadas. O mesmo poderia ser válido para outros tipos de atividades ilegais pela internet.

Folha - O sr. acredita que esse tipo de regulamentação seja possível?
Cerf - Acho que não. É mais provável que vejamos acordos multilaterais ou bilaterais de que um padrão mundial de regras como o que mencionei. Aponto, entretanto, que temos uma necessidade igualmente importante de padronizar internacionalmente o comércio eletrônico; isto é, o que é um contrato legal, como assiná-lo digitalmente, como resolver disputas internacionais de negociações feitas pela internet. Precisamos de acordos internacionais indo além da busca por criminosos, o que acho difícil de criar em uma rede global tão abrangente.

BREVE HISTÓRIA DA INTERNET: Anos 70 Primeiras experiências de uma rede conectando computadores, no início como projeto militar dos EUA


1972 A Agência de Pesquisa para Projetos Avançados, organização do governo norte-americano, lança a Arpanet, bases da "inter-networking", protótipo da internet

1973 Em Stanford, Vinton Cerf escreve o artigo "Internetting", publicado no ano seguinte

Anos 80 É criada a linguagem de computação que permitiria o desenvolvimento de páginas gráficas e a utilização dos hipertextos; a expressão World Wide Web é consolidada, traduzindo a idéia uma rede global; instituições universitárias são conectadas através da rede

1º de janeiro de 1983 Vinton Cerf inaugura a comunicação de todo o seu grupo acadêmico permanentemente em Transmission Control Protocol (TCP), que enviava informações em blocos

Começo dos anos 90 É criado o browser Mosaic, que estava na origem de todos os navegadores utilizados atualmente; são criadas as "páginas" de internet tal como as conhecemos hoje

1995 A internet comercial passa a funcionar. É criado o site Yahoo!. Os primeiros sites brasileiros entram no ar

1996 É o auge da disputa entre Microsoft e Netscape, que era então a maior ameaça à hegemonia da empresa de Bill Gates

Final dos anos 90 A Microsoft reestrutura seus negócios para fazer face à rede e investe no navegador Internet Explorer; Google começa a se consolidar

2000 Ataques em larga escala a grandes portais prenunciam a necessidade de aumentarem as medidas de segurança; grandes empresas são beneficiadas; estoura a bolha, e a valorização das pontocom no mercado de ações desaba

2001 A Justiça norte-americana restringe o portal Napster, que havia se popularizado oferecendo intercâmbio gratuito de músicas pela internet Começo dos anos 2000 O portal Google se consagra, lidera os portais de busca e rivaliza com a Microsoft

2005 O projeto do portal Google de disponibilizar livros em larga escala na rede é alvo de forte oposição de editoras americanas e de especialistas; temas como direitos autorais, pirataria e a proteção dos acervos das bibliotecas nacionais causam polêmica, e a empresa recua

2005-2006 Calcula-se que o número de ciberusuários no mundo tenha chegado a 1 bilhão 2006 em poucos dias, diferentes episódios ameaçam o funcionamento livre e democrático da rede

(*)Repórte do jornal Folha de S. Paulo. Matéria publicada no caderno Mais, de 29/01/06.

sexta-feira, janeiro 27, 2006

TRABALHO: Mercado exclui os jovens e os menos instruídos

Desde o início do governo Lula, o mercado de trabalho se tornou mais seletivo e passou a excluir jovens e pessoas com menor grau de instrução, apesar do crescimento do emprego -de 3% de 2003 a 2004. Segundo o IBGE, a participação das pessoas com 11 anos ou mais de estudo (ensino médio ou curso superior completo) entre os empregados passou de 46,7% para 50,3%. Foi a primeira vez em que esse contingente superou a marca de 50%. Já a faixa com mais de 50 anos cresceu de 16,8% para 18%. Quando Fernando Henrique Cardoso deixou o governo, em 2002, a média mensal do número de empregados era de 18,669 milhões nas seis regiões. O número passou para 19,830 milhões no ano passado. Para Marcelo de Ávila, economista do Ipea, tais mudanças ocorreram tanto por fatores conjunturais quanto estruturais, como o envelhecimento da população. Mas o determinante, para ele, é a distorção no mercado de trabalho gerada pela crise de 2003 e pelos sucessivos anos de recuo da renda.

Desempregado ou ganhando menos, o chefe de família teve de contar com ajuda de um filho ou da mulher para complementar o orçamento familiar ou compensar a falta de emprego, mesmo que ajudando no próprio negócio da família, diz. Passada a crise, essas pessoas estão saindo pouco a pouco do mercado de trabalho e voltando a estudar ou cuidar da casa relata o pesquisador.

O crescimento do emprego, no entanto, não foi uniforme: o contingente de jovens de 18 a 24 anos teve crescimento de apenas 0,2%; o de pessoas de 25 a 49 anos, de 3,5% e o de 50 anos ou mais de idade, de 6,3%. Segundo Cimar Azeredo Pereira, gerente da Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE, a mudança na estrutura pode ser explicada pelo mercado de trabalho mais seletivo, que prioriza profissionais com experiência e, por outro lado, ao aumento da renda do trabalhador, que faz com que os jovens adiem a entrada no mercado de trabalho. Houve também aumento do emprego formal -mais vagas com carteira assinada.

GOVERNO CONTRATA MAIS
Dois especialistas em mercado de trabalho ouvidos pela Folha consideraram bastante animadora a diminuição do índice de desemprego ocorrida em dezembro, mesmo tendo ela ocorrido durante uma época do ano em que, normalmente, fatores sazonais empurram a taxa para baixo. "É uma queda animadora, mas dificilmente se repetirá nos próximos meses com igual magnitude", afirmou o sociólogo José Pastore, pesquisador da Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas). Para ele, além das contratações temporárias nas áreas de comércio e serviços, o governo teve um papel decisivo para inflar o número de postos de trabalho.

Pastore lembrou que vagas preenchidas em setores nos quais o Poder Executivo tem ampla atuação (educação, saúde, serviços sociais, administração pública, defesa e seguridade social) cresceram 4,3% em dezembro de 2005, ante igual período de 2004. Em números totais, isso significa que 129 mil pessoas a mais foram contratadas para atuar nas áreas citadas acima. "A lei impede o governo de empregar novas pessoas perto das eleições, por isso houve uma aceleração das contratações em 2005", afirmou Pastore. "É provável que elas continuem acontecendo nos próximos meses."

O economista da Hélio Zylberstajn, da Universidade de São Paulo, discorda e aponta outro motivo para os bons resultados de dezembro: a desistência dos brasileiros de procurar trabalho. "É uma conta simples: entre novembro e dezembro houve uma redução de 300 mil pessoas nos registros de desempregados. Em contrapartida, o número de empregados teve um acréscimo de 100 mil indivíduos", ponderou ele. "Logo, 200 mil deixaram de procurar uma vaga."

Isso pode ter ocorrido, diz, pela combinação da proximidade das férias de quem estuda ou está empregado com o fato de mais chefes de família terem conseguido um posto, o que permitiria a outros parentes desistir de trabalhar. Pastore e Zylberstajn apontam como preocupante o aumento acentuado da renda no mercado informal. O dado, segundo ambos, leva a crer que cada vez mais profissionais qualificados estão sendo empurrados para fora da legalidade, por conta do alto custo que representam para empregadores. Eles também estariam tentando diminuir a própria carga tributária.

(*) Reportagens publicadas na Folha de São Paulo, em 27/01/2006.

SERÁ QUE É HORA DE TROCAR O SEU PC?
Novo Windows e chips dois-em-um tornarão obsoletos os micros atuais; veja como dar uma sobrevida ao seu micro

Bruno Garattoni (*)

Nunca houve, no Brasil, tanta gente com vontade de comprar computador. Por causa da queda do dólar e de uma redução nos impostos, entre outros fatores, o mercado nacional está batendo recordes: no ano passado, foram vendidos 13,1 milhões de PCs, 15% a mais do que em 2004 (segundo dados da empresa de pesquisas Gartner). Se tantas pessoas estão comprando micros, agora é um excelente momento para você trocar o seu por um novo, certo? Errado. 2006 trará novidades de peso, que devem chacoalhar o mundo dos computadores e exigem cautela dos interessados em uma troca. Se você comprar já o primeiro PC (ou Mac) que encontrar pela frente, corre sério risco de fazer um mau negócio, levando pra casa uma máquina que ficará obsoleta em pouco tempo.Isso acontece, principalmente, por três motivos. Depois de atrasos intermináveis, o sistema operacional Windows Vista, primeira atualização desde o XP, de 2001, teve seu lançamento confirmado para este ano. Além disso, 2006 é o ano da migração para os processadores dual core – chips duplos, ou seja, que têm dois núcleos de computação e são, por isso mesmo, inegavelmente mais rápidos do que os atuais.

Há, também, a mudança da Apple, e dos computadores Macintosh, para os chips Intel Core Duo, que além de serem dual core prometem melhorias, tanto em desempenho quanto em economia de energia (algo vital para notebooks), em relação aos atuais processadores G4 e G5, da IBM. Por tudo isso, a melhor opção é esperar: afinal, quem não preferiria comprar, por um preço similar, uma máquina com processador dois-em-um? Também seria muito melhor, ao adquirir um PC novo, já levar o sistema Vista – ele não é um upgrade irresistível (como foi, por exemplo, a mudança do Windows 3.x para o 95), mas trará melhorias relevantes e desejáveis.

Mas, se você está insatisfeito com o seu computador atual (veja algumas situações típicas na página ao lado), o que fazer? Sofrer com ele, por meses, até que as novidades cheguem ao mercado brasileiro? Não: sem gastar muito dinheiro, é possível melhorar alguns componentes do seu PC e adiar bastante a troca dele. Vários dos upgrades poderão ser reaproveitados quando você comprar uma máquina nova. E, em muitos casos, uma reles faxina no Windows já melhora bastante o desempenho da máquina.

A instalação de upgrades geralmente é simples, exceto por um componente: o processador, que, na prática, é muito difícil de atualizar (e, por isso mesmo, tem muito peso na hora da compra).

DUAL CORE?
Os chips duplos, em tese, poderiam quase dobrar a performance do computador. Na prática, não é bem assim – as demais peças da máquina limitam a performance, e a grande maioria dos softwares não é otimizada para o processamento paralelo, especialidade dos processadores dual core. É praticamente impossível achar PCs dual core no mercado brasileiro. Um deles é o HP dx5150, que vem com o processador Athlon X2 3800+, de dois núcleos. Ele tem preço razoável (R$ 3.199) e excelente performance, mas é uma exceção: mesmo nas lojas que vendem PCs personalizados, montados na hora, é difícil encontrar o Athlon X2 (não o confunda com o Athlon 64, que não é dual core).

A Intel também já oferece uma opção dois-em-um, o processador Pentium D. Mas ele tem um problema vital: está sendo abandonado pela empresa, que preferiu apostar no Core Duo, cuja arquitetura interna é baseada no Pentium M (hoje presente nos notebooks Centrino). Se a própria Intel está deixando de lado o Pentium D, por que você vai comprá-lo?

MAS EU NÃO LIGO PRA ISSO...
Mesmo se você não está preocupado com o desempenho do computador, ainda assim pode se estrepar fazendo uma compra precipitada: hoje, a esmagadora maioria dos PCs nacionais adota os padrões PCI e AGP, que estão morrendo. É fundamental, ao comprar uma máquina, exigir que a placa-mãe tenha entradas do tipo PCI Express, que está substituindo os padrões AGP e PCI. Sem PCI Express, você poderá encontrar sérias dificuldades, daqui a dois ou três anos, quando quiser atualizar o seu computador.

(*) Repórter do jornal O Estado de S. Paulo. Matéria publicada em 23/01/2006.

terça-feira, janeiro 17, 2006

VIDA UNIVERSITÁRIA:

SETOR PRIVADO ENFOCA MERCADO

Segundo pesquisadora, universidades públicas possuem uma "lógica mais acadêmica"


Constança Tatsch (*)

Estudar em uma universidade particular, para grande parte dos estudantes, representa uma segunda opção. Apesar disso, muitas instituições privadas atendem bem às demandas dos alunos, especialmente no que se refere à entrada no mercado profissional. "Do ponto de vista da formação, se a perspectiva é entrar no mercado de trabalho, o aluno é mais bem-sucedido no setor privado", afirma a pesquisadora do Nupes (Núcleo de Pesquisa sobre o Ensino Superior) da USP Elizabeth Balbachevsky. De acordo com ela, cursos novos como moda, design e hotelaria, e outros mais tradicionais na área de administração e comunicação, por exemplo, são muito bons nas privadas. "A pública não consegue cobrir essa demanda e quando faz fica ruim. Isso é um ensino necessário e importante e a pública trabalha com uma lógica exclusivamente acadêmica", diz. Isso porque os professores não vão ser avaliados "pela competência, pela experiência, pelo conhecimento do mercado, mas sim se têm doutorado, se publicam no exterior etc.".

Para a melhoria da qualidade no setor houve um aumento na circulação de pessoal entre as instituições públicas e as privadas. "Antes, o professor do setor privado era de colegial, completamente alheio à vida acadêmica", diz Elizabeth. Uma vantagem dos alunos das particulares é que eles estão praticamente livres das greves. De acordo com o presidente do Semesp (sindicato dos estabelecimentos de ensino superior do Estado de São Paulo), Hermes Ferreira Figueiredo, o setor privado está há 17 anos sem greve de professores ou funcionários."A primeira vantagem de quem escolhe uma faculdade privada de bom nível é o respeito aos direitos dos alunos. Ele contrata um serviço e nós prestamos esse serviço. Isso [a greve] é um prejuízo enorme de tempo e de eficácia para os alunos", diz Figueiredo. Essa lógica de mercado acaba sendo um ponto positivo. "A universidade pública, de maneira geral, não é atenta às necessidades do aluno, tem uma lógica de funcionamento burocrática", afirma Elizabeth.

A professora cita como exemplo o curso de relações públicas, na USP, no qual os estudantes, com o passar do tempo, migram para o período noturno, mas os serviços de atendimento ao aluno fecham à noite. "Isso jamais aconteceria no setor privado porque os alunos botariam a boca no trombone." "Nas principais particulares, há renovação de equipamento, acervo, infra-estrutura. Recebem investimento com mais facilidade e rapidez, de acordo com a demanda", completa Figueiredo. Apesar de tudo, para muitos, a escolha da faculdade ultrapassa essas questões e pode ter um aspecto mais subjetivo. Fernanda Guerreiro Barbizan, 18, presta direito e não quer a São Francisco porque diz que não gosta do jeito do curso, das pessoas e do ambiente. "A USP, todo mundo sabe, tem cursos ótimos e outros que não são tudo isso. Não estou dizendo que não é bom, mas não me encaixo no perfil." Para Fernanda, há muito glamour em torno da universidade. "Acho a USP meio presa às regras, até porque tem toda aquela pompa. As particulares te deixam mais solto. Acho o ensino melhor até. É um dinheiro bem investido", opina.

VESTIBULAR
Entrar em uma faculdade privada também pode significar abreviar o tempo de vestibular. Any Julia Urbieta, 21, cursou pedagogia na USP e se decepcionou com o curso e com a universidade. Na hora de escolher uma faculdade para estudar administração, preferiu uma particular. "Nem passou pela minha cabeça prestar USP de novo. Como eu já tenho 21 anos, não queria perder mais tempo." Ela diz estar feliz com sua escolha. Foi aprovada e já recebeu proposta de estágio, antes mesmo de fazer a matrícula. "É uma instituição que já conheço, amigos me disseram que tem bons professores, o curso é bem aceito no mercado e a faculdade é conceituada."

OPÇÃO POR PARTICULAR PEDE PESQUISA

É preciso verificar credenciamento no MEC, infra-estrutura, docentes e conteúdo do curso


Fernanda Calgaro (*)

Nesta época do ano, quando os principais vestibulares do país já ocorreram, o foco de muitos candidatos que não se saíram bem nessas provas se volta para a seleção de faculdades privadas, algumas delas sem renome ou tradição na área escolhida. Infra-estrutura moderna, acervo da biblioteca e laboratórios equipados com tecnologia de ponta são alguns dos aspectos que devem ser levados em conta. Se não for possível visitar o campus, conversar com alunos ou egressos do curso e ver a página da instituição na internet ajudam. O candidato deve ainda analisar atentamente o conteúdo do curso e a carga horária para ver se o que será oferecido lhe convém. A participação em periódicos especializados e o desenvolvimento e a publicação de pesquisas refletem o comprometimento da instituição e são indicativos de que ela está inserida no meio acadêmico.

No entanto, antes de mais nada, o aluno deve saber se a instituição é credenciada pelo Ministério da Educação. Em seguida, se o curso é reconhecido ou, ao menos, autorizado. "Se a faculdade não for credenciada, o aluno deve procurar a delegacia mais próxima", alerta Orlando Pilati, coordenador-geral de Acreditação de Cursos e Instituições do MEC. Já o reconhecimento dos cursos ocorre após a sua autorização. "Não há problema se o aluno começar a fazer um curso que ainda não tenha sido reconhecido, desde que esteja autorizado, porque, mais para a frente, o reconhecimento deve sair. E mesmo que a decisão final seja a de não reconhecer o curso, ainda assim os alunos terão seus direitos garantidos e receberão o diploma", completa Pilati.

Este foi o caso do designer gráfico Cristiano da Silva Lima, 23, que, quando começou a fazer a faculdade, o curso era apenas autorizado pelo MEC. "Eu não sabia disso, mas, como o curso foi bem indicado por diferentes pessoas, resolvi fazer assim mesmo. Quando estava no segundo ou no terceiro ano, ele foi reconhecido e não houve problema algum."

PROFESSORES
A qualificação e a titulação do corpo docente também irão refletir na qualidade do ensino, ressalta Hermes Ferreira Figueiredo, presidente do Semesp (Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior do Estado de São Paulo). "Se o professor trabalhar em muitos lugares e não tiver dedicação em tempo integral, ficará mais complicado dar atenção ao aluno", pondera. Para Elizabeth Balbachevsky, pesquisadora do Núcleo de Pesquisa sobre Ensino Superior da USP, é fundamental que o curso tenha ainda um bom coordenador. "Às vezes, um coordenador renomado é chamado apenas para dar prestígio, mas quem toca o dia-a-dia é outra pessoa. Se o coordenador for experiente e comprometido com o curso, já será meio caminho andado."

O desempenho dos alunos no Enade também pode ser consultado para ter uma referência do aproveitamento do curso, assim como a avaliação da instituição pelo Ministério da Educação. "O aluno precisa estar atento aos indicadores para separar o joio do trigo e para que a escolha não seja uma aventura", afirma Elizabeth.

CUSTO
O valor da mensalidade não deve pesar tanto na decisão do candidato, de acordo com o presidente do Semesp. "[O aluno] Não deve se prender unicamente pelo preço, porque manter professores de alto nível, equipar laboratórios e ter uma administração profissional têm um alto custo", ressalta Hermes Ferreira Figueiredo. "Se a mensalidade estiver muito aquém da média cobrada no mercado, o aluno deve desconfiar."

domingo, janeiro 15, 2006

URBANISMO: Três estudos derrubam mitos sobre favelas

Publicações exibem perspectivas que escapam do estigma das comunidades como focos de violência, crime e miséria

Antônio Gois (*)

Espaço da total informalidade, lugar de pobreza absoluta ou de mão-de-obra para a criminalidade. Essas visões, comumente associadas às favelas cariocas, estão sendo contestadas em três livros recém-lançados sobre o tema. Eles ajudam a entender visões e preconceitos que a cidade foi construindo desde que a primeira favela passou a ser objeto de medo e preocupação no Rio. Os livros "A Invenção da Favela" (editora FGV), de Licia Valladares, "Favelas Cariocas" (editora Contraponto), de Maria Lais da Silva, e "Favela, Alegria e Dor na Cidade" (Senac Rio e X Brasil), de Jailson de Souza e Silva e Jorge Luiz Barbosa, mostram que a relação da classe média e da alta sociedade carioca com as favelas oscilou entre o medo, o desejo de remoção e o reconhecimento delas como parte da cidade.

No livro de Maria Lais da Silva ("Favelas Cariocas"), que analisou o período de 1930 a 1964, descobre-se que a mais emblemática favela da zona sul do Rio, a Rocinha, não surgiu de uma invasão, mas de um loteamento autorizado pela prefeitura que se expandiu fora da legalidade por causa da demora na regularização. "Boa parte das favelas eram ocupações autorizadas e não nasceram ilegais. O crescimento delas acompanhou os processos de expansão da cidade", diz ela.

Jorge Barbosa ("Favela, Alegria e Dor na Cidade") concorda e afirma que a característica da ilegalidade só é reforçada quando se trata de favela: "A informalidade é uma marca de toda a cidade. Hoje, 43% dos imóveis do Rio são de alguma forma ilegais. Há, por exemplo, condomínios de luxo com altura maior do que a originalmente permitida".

Dos três livros, o da socióloga Licia Valladares ("A Invenção da Favela") é o que mais ajuda a entender as origens de tantos conceitos e preconceitos. Muitos deles nasceram a partir do morro da Favella (hoje morro da Providência), que foi ocupado em 1897 por ex-combatentes da guerra de Canudos que pressionavam o Ministério da Guerra a cumprir promessas feitas aos soldados.

Valladares mostra que a partir da década de 20 o nome favela passa a rotular todo tipo de ocupação da população pobre em morros. Nesse período, o termo já estava repleto de preconceitos, como mostram trechos de jornais da época que se referiam às favelas como lepras a serem eliminadas e a seus moradores como criminosos à margem da lei. "Vários dogmas sobre favelas ainda persistem. Elas sempre foram vistas como locais de especificidade, diferentes dos demais por ser favela. Isso leva a uma visão homogênea sobre comunidades muito diferentes entre si. Também faz com que se analise a favela sem levar em conta os processos de ocupação fora dos morros", afirma Valladares.

Para ela, isso faz com que as favelas sejam vistas como únicos locais de pobreza, ilegalidade ou violência. "Falar de favela é exótico, chama atenção, mas pouco se fala de loteamentos na periferia onde há uma população muito pobre, onde há tráfico de drogas e onde há necessidade de regularização. É como se só na favela houvesse pobreza ou violência." Um estudo feito no ano passado pelo Instituto Pereira Passos confirma essa tese. Ele mostra, a partir do Censo 2000 do IBGE, que 64% da população que vivia na cidade do Rio com uma renda per capita inferior a um salário mínimo estava fora de favelas. Para a socióloga, esse discurso da favela como local único da pobreza foi alimentado tanto pela direita, ao defender sua remoção, quanto pelas organizações não-governamentais de esquerda, para justificar seu financiamento.

Crime
O geógrafo Jailson Silva ("Favela, Alegria e Dor na Cidade") lembra que a visão da favela como mão-de-obra barata para o crime é outro desses mitos usados pela esquerda e pela direita. "A gente ouve muito que é preciso ter programas sociais para que o jovem não se torne um criminoso, mas raramente se diz que ele tem direito a esses programas. É um juízo disseminado de que temos que oferecer oportunidades apenas para conter a violência."

Ele também não concorda com o discurso que justifica a ilegalidade a partir da pobreza: "O pobre não tem que deixar de pagar luz ou imposto por ser pobre, mas é preciso pensar em tarifas sociais e em investimentos públicos em favor dessas comunidades". Para Silva, muitos desses mitos foram construídos a partir do paradigma da ausência: "As favelas são sempre definidas a partir do que não têm. É o local da pobreza, da falta de perspectiva. É preciso construir um novo olhar a partir do paradigma da presença, ou seja, do que a favela tem". Um olhar a partir desse paradigma mostra, por exemplo, que Rocinha, Maré e Alemão têm indicadores de alfabetização, água, luz e esgoto melhores do que a média do Nordeste. Prova de que, como defendem os livros, as questões sobre as favelas são mais complexas do que supõe o senso comum.

(*) Repórter do jornal Folha de S. Paulo. Matéria publicada na edição de 7/01/2006.

sexta-feira, janeiro 13, 2006

MULHERES JÁ SUPERAM HOMENS NA ESCOLA

Segundo pesquisa, cinco indicadores mostram vantagem feminina; diferença entre negros e brancos diminui


Antônio Gois (*)

Para um país cuja marca maior é a desigualdade, a comparação de cinco indicadores educacionais entre 1992 e 2004 traz boas notícias: está diminuindo a distância que separa homens de mulheres e negros de brancos. Uma comparação feita a partir da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) pelo sociólogo Simon Schwartzman, presidente do Iets (Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade) e ex-presidente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), mostrou que mulheres e homens e negros e brancos terminaram 2004 mais próximos do que estavam em 1992. No caso das mulheres, a evolução foi tanta que já aponta para um novo problema: como fazer com que a desvantagem dos homens em relação a elas não aumente. Já quanto aos negros (pretos e pardos), o quadro mostra que, apesar dos avanços, a desigualdade ainda é marcante. Foram comparados anos médios de estudo da população com mais de 25 anos, taxa de analfabetismo adulto, percentual de freqüência à escola de 7 a 14 anos e defasagem e atraso escolar entre os 10 e 14 anos. Os avanços mais significativos na redução da desigualdade foram nos indicadores da população de 7 a 14 anos após a quase universalização do ensino nessa faixa etária e a diminuição significativa da defasagem escolar. Na comparação de indicadores que levam em conta a população adulta, também houve redução, mas ela foi menos intensa porque, como se trata de todo o conjunto da população adulta, as mudanças demoram mais a surtir efeito.

Gênero
Na comparação entre sexos, as mulheres começaram a década passada em desvantagem em dois dos cinco indicadores: média de anos de estudo da população e taxa de analfabetismo adulto. Doze anos depois, já superavam eles em todos os quesitos analisados. Naqueles em que desde 1992 a comparação já era favorável às mulheres (freqüência e atraso escolar), no entanto, houve diminuição na distância que as separava dos homens. De 1992 a 2004, a diferença a favor das mulheres em pontos percentuais caiu de 2,9 pontos para 0,9 no quesito freqüência escolar e de 8,6 para 6,3 na comparação entre as taxas de defasagem (veja quadro ao lado).

"As mulheres estão tendo um desempenho educacional muito melhor do que os homens. É um fenômeno importante que mostra que houve uma inversão", afirma Schwartzman. Para ele, a distância a favor das mulheres cria um novo problema: "Nos países africanos, a discussão é sobre como fazer para que as mulheres tenham as mesmas oportunidades educacionais do que os homens. No Brasil, a preocupação é oposta".

Raça
Entre negros e brancos, a queda da desigualdade pode estar revertendo, mesmo que lentamente, um quadro apontado num estudo de 2001 do Ipea feito por Ricardo Henriques, hoje secretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do MEC. Ele comparou a escolaridade média de negros e brancos desde 1929 e concluiu que "as curvas parecem construídas com intencional paralelismo, descrevendo, com requinte, a inércia do padrão de discriminação racial".

Nos últimos 14 anos, no entanto, a Pnad indica alteração nesse quadro. Em 1992, 2,3 anos de estudos separavam negros e brancos. Doze anos depois, essa diferença caiu para 2,1. Para Simon Schwartzman, não se pode dizer ainda que essa queda seja significativa, mas os indicadores que apontam para o futuro e os de analfabetismo mostram avanços. A diferença no percentual de crianças que freqüentam escola entre brancos e negros, por exemplo, caiu de 12,5 pontos para 2,8.

"Hoje, com o acesso praticamente universalizado da escola na faixa etária de 7 a 14 anos, a principal diferença entre brancos e negros deixa de ser no acesso e passa a ser no desempenho", diz Schwartzman, citando um estudo feito pelo pesquisador da PUC-Rio, Creso Franco. Esse estudo comparou notas do Saeb (exame do MEC que avalia a qualidade da educação) e mostrou que negros, mesmo em situação socioeconômica semelhante, tinham médias menores. O estudo explicava a diferença como uma forte evidência de preconceito na escola.

PERSONAGEM: Universidade deu para família salto educacional


Negra e mulher, a entrada de Mirian Costa da Silva, 29, numa universidade representou para sua família um enorme salto educacional entre gerações. Seu pai, o ex-pedreiro e hoje office-boy José Benedito da Silva, fez somente um curso de alfabetização de adultos. Sua mãe, Lindinalva da Silva, já morta, foi até a quarta série do ensino fundamental, o suficiente para trabalhar como empregada doméstica.
Aos poucos, Mirian mais avançava nos estudos e percebia que podia ir além do que a expectativa que sua família depositava nela.

"Nunca houve na minha criação a cobrança para ir bem nos estudos. A expectativa da família, e até a minha própria, era apenas a de que eu concluísse o ensino fundamental, casasse e conseguisse um emprego que não fosse de doméstica", afirma. Ela se matriculou em um curso pré-vestibular comunitário na favela Dona Marta (zona sul do Rio), onde vive, e demorou três anos até conseguir uma vaga no curso de serviço social na Universidade Veiga de Almeida, por meio do ProUni (Programa Universidade para Todos).

Em 2006, ela está se preparando para trocar de faculdade, pois conseguiu uma bolsa de estudos na PUC do Rio. "Em muitos momentos, eu me sentia desestimulada. Nenhum dos meus três irmãos tinha, até então, completado o ensino fundamental. A maior vontade de mudar isso veio de mim mesma." A entrada no ambiente acadêmico, tem ocorrido sem traumas: "Achava que ia encontrar na faculdade muita gente de nariz em pé. No entanto, tive um acolhimento muito bom".

Diferença é menor entre raças

No quesito racial, outras pesquisas têm demonstrado que, apesar da distância que separa os grupos ainda ser grande, tem havido redução na desigualdade. Neste ano, um estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) feito pelos pesquisadores Maurício Cortez Reis e Anna Risi Crespo mostrou que diminuiu a diferença salarial entre negros e brancos entre gerações. Em 1990, um branco entre 48 e 50 anos, por exemplo, ganhava 130% a mais do que um negro da mesma idade. Doze anos depois, a diferença salarial nesta faixa etária caiu para 90%. Entre 24 e 26 anos, a diferença no rendimento em 1990 era de 62% a favor dos brancos. Em 2002, caiu para 55%. Para os pesquisadores, o principal fator que explicava a queda era a redução da discriminação no mercado de trabalho.

Apesar dos avanços, a desigualdade é evidenciada quando se compara a proporção de pretos e pardos em cada profissão no Censo 2000 do IBGE. Quanto mais valorizada é a ocupação, menor é a proporção de negros. O Censo mostra que há apenas 8,9% de dentistas negros, 9,7% de arquitetos, 10,2% de médicos e 12,9% de juízes. Já entre pescadores e caçadores, no entanto, a proporção chega a 72,3%. Entre garimpeiros, são 70,6%, e, entre ajudantes de obras, 60,4%. A comparação do rendimento mostra também que em 92% das 509 profissões do Censo negros ganham menos do que brancos.

quarta-feira, janeiro 11, 2006

MILIONÁRIOS FAZEM BEM À SAÚDE

Donald G. Mcneil Jr. (do The New York Times)

NOVA YORK - A Fundação Bill e Melinda Gates anunciou recentemente que daria U$ 450 milhões para invenções ecléticas para ajudar os pobres do mundo: bananas mais nutritivas, vacinas fáceis de usar e produtos químicos que deixam mosquitos incapazes de cheirar suas vítimas, por exemplo. Nos seis anos desde sua criação, a fundação injetou dinheiro em iniciativas para produzir vacinas da aids e malária e pagou testes de drogas contra a tuberculose. Como filantropos, os Gates também se tornaram ativistas; passaram vários dias da semana passada na Índia e Bangladesh chamando a atenção para projetos que auxiliaram. Na verdade, o dinheiro da Fundação Gates - ao todo U$ 29 bilhões - e sua capacidade de atrair publicidade caiu como uma bomba na arena conservadora da saúde mundial, imprimindo urgência e um senso de possibilidade ao desafio de resolver os problemas.

Mas os Gates não foram os primeiros a ver que o dinheiro pode mover montanhas em saúde pública. Eles estão seguindo os passos de gigantes industriais do fim do século 19, homens que também empenharam suas fortunas para enfrentar problemas sociais e acreditavam que poderiam ser tão bem-sucedidos em filantropia quanto haviam sido nos negócios.

Os doadores dos tempos do "robber-baron" (barão-ladrão, magnatas americanos do fim do século 19 que enriqueceram por meios nem sempre lícitos) começaram sua atividade filantrópica enquanto ainda estavam vivos - uma idéia inovadora. Andrew Carnegie, por exemplo, abriu mão de centenas de milhões de dólares para construir bibliotecas muito antes de sua morte. O maior legado na história americana antes de Carnegie foi de John Hopkins, um comerciante de Baltimore que em 1873 deixou US$ 7 milhões para fundar uma universidade e um hospital com seu nome - após morrer.

Mas o paralelo mais próximo da atitude dos Gates é John D. Rockefeller, que ergueu a Standard Oil. Como Gates, foi o homem mais rico de seu tempo e aviltado como monopolista ganancioso. Rockefeller, como Gates, contratou um profissional para gerir suas ações beneméritas. E ele também usou o dinheiro para identificar e atacar problemas importantes de saúde pública.

Rockefeller contratou Frederick T. Gates, um ex-ministro como seu executivo filantrópico. Em 1892, Gates leu textos médicos que o convenceram de que as doenças tinham causas, como micróbios e vermes, que podiam ser combatidas - uma idéia não universalmente aceita na época.

Patty Stonesifer, principal executiva da Fundação Gates, disse que várias iniciativas com as quais a fundação hoje se identifica foram na verdade iniciadas com dinheiro de Rockefeller. Incluem a Internacional Aids Drug Development, a Global Alliance for TB Drug Development, a International Partnership for Microbicides e a Medicines for Malaria Venture.

Como disse Stonesifer sobre uma campanha de Rockefeller contra a febre amarela: "Muita gente diria: ‘É preciso reduzir a pobreza para eliminar a febre amarela’. Mas os Rockefeller disseram: ‘Vocês não precisam de uma intervenção de 20 anos. Vocês podem usar sapatos’." Finalmente, os investimentos dos Rockefeller em saúde pública lhes trouxeram um novo tipo de fama, provavelmente mais positiva que a decorrente de terem enriquecido.

domingo, janeiro 08, 2006

MENOS POBRES NA SEGUNDA FASE DA FUVEST

Na 1ª etapa do vestibular, 42,8% dos estudantes tinham renda inferior a R$ 1.500. Agora são apenas 22%


Renata Cafardo (*)

A proporção de estudantes carentes que participarão amanhã da segunda fase da Fuvest caiu em relação à dos que fizeram a primeira etapa. Todos os indicadores de pobreza dos candidatos - renda baixa, cor preta ou parda e ter estudado em escola pública -, que tinham crescido entre os inscritos neste vestibular, diminuíram se comparados também com os convocados para a segunda fase no ano passado. A queda aconteceu apesar do aumento no número de alunos de escolas públicas no exame, provocado pela oferta recorde de 65 mil isenções da taxa de inscrição. "Estamos chamando mais alunos de escolas públicas, mas isso não significa que eles estão entrando na universidade", diz o diretor da Fuvest, Roberto Costa. Entre os inscritos no vestibular para a Universidade de São Paulo (USP), 42,8% tinham renda inferior a R$ 1.500. Já entre os aprovados na primeira fase, realizada em novembro, o índice caiu para 22%. Isso representa cerca de 6.800 alunos do total de 31.104 que farão a segunda fase. Só são aprovados para participar das provas dissertativas - que vão até quinta-feira - os candidatos que acertam número igual ou superior à nota de corte da carreira escolhida.

Pedro Germano dos Santos Murara, de 19 anos, acertou 30 das 100 questões da primeira fase. Para continuar na disputa por uma vaga em Geografia, ele precisava ter acertado 47. Pedro culpa a rede pública de ensino. "Professores de física, por exemplo, eu praticamente não tinha." Filho de um motorista e de uma dona de casa, Murara diz que vai continuar tentando ingressar na universidade pública. "Quero ser professor para melhorar a escola. Meu sonho é ser ministro da Educação."

A porcentagem de estudantes que fizeram o ensino médio em escolas estaduais era de 41,8% entre os inscritos e diminuiu para 21,3% entre os convocados para a segunda fase. Em 2005, eles eram 23,4%. Entre os que cursaram o fundamental na rede pública também há diferença. Os alunos pretos e pardos representam cerca de 4 mil alunos (12,9%) na segunda fase e eram 39 mil (23,1%) entre os inscritos.

EXPLICAÇÃO DIFÍCIL
O diretor da Fuvest, Costa, diz que ainda vai estudar a razão da queda nos índices. Mas explica que muitas variáveis influenciam no resultado. Uma delas pode ser o fato de a prova ter sido um pouco mais difícil neste ano. As notas de corte - calculadas a partir do desempenho dos candidatos - foram mais baixas. A médias na primeira fase foi de 41,39 neste ano. Em 2005 era de 47,74.

"Quando se faz uma campanha com muita isenção, vêm mais alunos carentes, mas vem também mais gente menos preparada", sugere Costa. E a fórmula matemática que organiza a convocação para a segunda fase faz com que quanto pior a média no curso, menos alunos sejam convocados.

Para frei David dos Santos, da ONG Educafro, o problema é que a prova da Fuvest "é direcionada aos alunos da elite, que estudam em escolas particulares e pagam cursinhos". Segundo ele, 75% das questões da primeira e da segunda fase não foram estudadas nas escolas públicas. "É uma missão quase impossível", concorda o presidente da Sociedade Afro-Brasileira de Desenvolvimento Sócio Cultural (Afrobras), José Vicente, que oferece cursinho gratuito para estudantes pobres e negros.

A maior inclusão de estudantes carentes na USP foi anunciada como uma das maiores preocupações da nova reitora, Suely Vilela. A idéia de adotar cotas em seu vestibular não é bem recebida na universidade e as isenções da taxa e a abertura da USP Leste - que, de fato, ampliou o número de alunos carentes - foram, até agora, apresentadas como opções.

(*)Repórter do Jornal O Estado de S. Paulo. Matéria publicada na edição de 07/01/2006.

sábado, janeiro 07, 2006

NEI LOPES: O pensador do Irajá

O sambista e intelectual ganha perfil de Cosme Elias em livro que investiga a identidade do negro e do carioca, a partir da análise de sua obra


Adriana Del Ré (*)

Cantor, compositor, pesquisador e pensador da identidade negra e carioca, Nei Lopes, de 63 anos, é um daqueles casos célebres do menino pobre que encontrou seu lugar no mundo. No caso dele, um garoto nascido e crescido no bairro do Irajá, subúrbio do Rio - difundido como espaço de concentração de negros e mulatos relegados à periferia -, que se tornou um dos intelectuais brasileiros mais atuantes no que se refere a assuntos ligados à cultura, tradição e história do negro. Nei se comporta como um denunciador do apartheid imposto à cultura e, sobretudo, à música produzida no Rio, descreve Marcus Vinícius de Andrade, presidente da Amar/Sombrás, entidade da qual Nei Lopes faz parte, em texto escrito para o livro O Samba do Irajá e de Outros Subúrbios - Um Estudo da Obra de Nei Lopes, de Cosme Elias (Pallas Editora, 284 págs., R$ 38). "Para embasar sua ação crítica, Nei Lopes tem sido um pensador radical, no conceito que a filosofia marxista empresta ao termo: aquele que busca a raiz das coisas", diz Andrade. "Nesse sentido, sua música se nutre, conscienciosamente, de seu labor como historiador e lexicógrafo. Tendo pesquisado a fundo a cultura e identidade negras, notadamente a história dos povos bantos desde a remota Mãe África, Nei Lopes enveredou também pelo estudo das matrizes lingüísticas que congos, quimbundos, umbundos, ovimbundos e outros grupos legaram à língua portuguesa."

Pois então: o sambista carioca, que nas últimas décadas, expressou seu papel de ativista compondo e escrevendo, de próprio punho (ele acaba de lançar dois livros, Partido Alto - Samba de Bamba e Kitábu - O Livro do Saber e do Espírito Negro-Africanos), vê agora mais do que sua história, mas sua obra sob foco de análise, dentro do contexto socioeconômico, histórico e cultural. A princípio, o autor Cosme Elias pensou no estudo como tema de sua dissertação de mestrado em Ciências Sociais, no qual constrói o perfil múltiplo do afro-americano do Irajá, um misto de historiador, compositor, etnólogo, advogado e partideiro, cada qual alinhavado por uma coerência de vida e de produção intelectual. A análise extrapolou o reduto acadêmico e acaba de ganhar as prateleiras das livrarias.

O título que batiza a obra é inspirado em uma das canções mais representativas dentro da obra de Nei. O compositor a escreveu num momento de sufoco financeiro, no começo dos anos 70. Àquela época, ele se via obrigado a trabalhar como redator num ambiente que não lhe agradava. Durante a hora do almoço, começou a compor uma canção, inspirado no pai, que não costumava se abater diante das ameaças do chefe. Sua pai havia nascido meses antes da Abolição da Escravatura e morreu em 1960, na véspera de aniversário de 18 anos do compositor. Surgia ali a canção Samba do Irajá.

Ele nasceu Nei Braz Lopes, em 9 de maio de 1942. Sua mãe o teve em casa, ajudada por uma parteira portuguesa. Caçula de uma família de 13 irmãos, vinha ao mundo o mulatinho franzino e de saúde frágil que, mais tarde, com a tomada de consciência de sua negritude, se tornaria negro e um dos principais nomes da cultura popular brasileira. "Eu não nasci ‘negro’, me fiz negro. Na minha época, essa circunstância étnica era ainda mais adversa do que hoje", conta Nei. "A gente, quando tinha a pele um pouco mais clara, mesmo sendo beiçudo e de venta larga, saía pela tangente: ‘Sou mulatinho, sou moreno.’"

A convivência naquele ambiente, reforçado pela presença de certos parentes e amigos, acabou delineando seu caminho. O contato com a música, por exemplo, veio na infância, quando ouvia sua mãe cantar músicas de Sinhô enquanto passava roupa. Sua família era feita de músicos. Teve dois tios e dois irmãos reconhecidamente grandes músicos. Havia ainda o sobrinho Dairzinho, cavaquista. "A família era e ainda é extremamente musical. Só que o único que realmente se profissionalizou fui eu."

Essa profissionalização veio mais tarde. Antes disso, Nei se alfabetizou na casa da tia e, aos 11 anos, já no ginásio, publicou os primeiros versos no jornal dos estudantes. Mas o período de socialização ocorreu mesmo em 58, fase importante na vida do compositor, quando seu pai e vizinhos fundaram um clube, o Grêmio Pau-Ferro. Lá, Nei se desdobrava em diretor-secretário, ator de teatrinho, cantor, bailarino e escritor de peças de teatro, além de conquistar as primeiras namoradas.

A incursão pelo samba, que se configurou no universo ‘neidiano’ como uma de suas formas de expressão mais preeminentes, veio com o amigo Maurício Theodoro, que conheceu na escola técnica e cuja família tinha relação estreita com escolas de samba. Segundo Elias, esta ocasião foi importante, porque foi a iniciação de Nei no mundo do samba, o momento de uma nova tomada de consciência em relação à sua condição social e sua negritude. Por aquele tempo, o compositor se aproximou da religiosidade e da escola de samba Acadêmicos do Salgueiro. "O Salgueiro da época em que Nei começou a fazer parte, na década de 60, foi uma escola que começava a apresentar, em seus desfiles, temáticas raciais envolvendo a questão da negritude", observa Cosme Elias.

Formado em Direito, na década de 70 resolveu largar a profissão. A decisão abriu caminho para a carreira artística. "Advoguei, mas logo enjoei. A profissão não me permitia criar nada", diz o sambista. Passou então a criar textos para rádio e TV, jingles publicitários e a compor os primeiros sambas em parceria com Almir Santana, apesar de nenhum deles ter sido gravado. "Estava dentro do ambiente de música, dos estúdios. Então comecei tudo, compondo, gravando...", recorda ele.

Sua primeira canção gravada foi Figa de Guiné, feita com Reginaldo Bessa, que conheceu nos tempos que fazia jingles, e
registrada por Alcione, em 1972. É a partir desse ano que Nei Lopes contabiliza sua carreira profissional. Mas os sucessos só vieram depois, em fins dos anos 1970 - década em que o samba ganhou novo fôlego no cenário musical. Teve sua composição Coisa da Antiga gravada por Clara Nunes, em 77, e Senhora Liberdade e Gostoso Veneno, em 79, registradas por Zezé Mota e Alcione, respectivamente. As duas últimas foram assinadas com Wilson Moreira, seu parceiro mais célebre.

Foi em 72 também que o sambista estreou como intérprete num disco, Tem Gente Bamba na Roda de Samba, ao lado de outros artistas, em um tipo de gravação que na época era conhecido como trampolim para as carreiras artísticas dos envolvidos. Atualmente, sua discografia agrupa quase dez álbuns, entre LPs e CDs, mantendo-se fiel ao universo do samba. É nesse universo, aliás, que Elias encontra um viés para analisar a obra do artista em seu livro.

De acordo com o autor, é dentro da idéia de construção ‘identitária’ relacionada a um processo histórico nacional, em que o samba se apresenta como veículo de exteriorização das camadas subalternas, que ele deseja demonstrar como o samba se porta enquanto elemento de afirmação dessa identidade. "A construção da identidade, seja carioca ou negra, é um tema que não pretendo esgotar neste livro, apenas delinear, a partir da obra de Nei Lopes, os aspectos ‘identitários’ em sua produção musical e literária, observando como constrói o negro, o carioca e suas simbologias."

(*) Repórter do jornal O Estado de S. Paulo. Matéria publicada em 01/01/2006.

ARTIGO:

O INDIVÍDUO VENCEU O CIDADÃO?

Gilberto Dupas (*)

O indivíduo é o inimigo número um do cidadão. Tocqueville dizia que o cidadão procura seu próprio bem-estar pelo bem-estar de sua cidade, enquanto o indivíduo não acredita na causa comum ou na sociedade justa; para ele, bem comum é cada um se virar ao seu modo. Para o indivíduo, a única função útil do poder público é garantir que cada um possa seguir seu próprio caminho em paz, protegido em sua segurança física e de suas propriedades. Mas para isso é preciso que ele e as outras pessoas tenham trabalho, que todos os bandidos estejam nas prisões e as ruas, livres de raptores, ladrões, terroristas e pervertidos. Obviamente, o poder público está cada vez mais longe de poder cumprir essa função.

Nas últimas décadas inventamos uma espécie de versão privatizada da modernidade, em que tudo é responsabilidade do indivíduo. Praticamente não há mais agenda coletiva; no máximo, programas assistencialistas, que dão um pouco de recursos públicos a famílias com fome. A regra é cada um por si, lembra-nos Zygmund Bauman. Dependendo do dinheiro que cada um tem, só sobraram os divãs de análise, as camas de motel ou os sacos de dormir. Visões comunitárias já não definem as identidades. Estamos hoje aparentemente muito mais predispostos à crítica, mais briguentos e intransigentes. Mas nossa crítica não tem dentes, não produz efeitos sistêmicos nas nossas opções de políticas e de vida. Leo Strauss lembra que a aparente liberdade sem precedentes que nossa sociedade oferece a seus membros veio acompanhada de uma impotência também sem precedentes. A crítica que se fazia às fábricas fordistas é que mantinham os trabalhadores como robôs obedientes, as identidades e os laços sociais deixados nos armários de aço da entrada. Hoje se anseia por um trabalho com carteira assinada e só se consegue algum no informal. Antes o Grande Irmão nunca dormia, controlava a todos. Hoje, sentimos saudades dos empregos que oferecia. Movemo-nos com mais liberdade. Mas, para onde, se o horizonte da gratificação, a linha de chegada em que vem o descanso, se remove mais rápido que qualquer corredor? Tudo foi desregulado e privatizado, cedido à coragem e a energias individuais. E quem não as tem o suficiente?

O conceito de sociedade justa, direito do cidadão, virou "direitos humanos", ou seja, direito do indivíduo de eleger seus próprios modelos de felicidade e os estilos de vida mais convenientes. O ônus pesado dessa "emancipação" recai sobre as camadas médias e baixas. "Não há mais salvação pela sociedade. Não existe 'a sociedade'", dizia Margaret Thatcher. Não olhe acima nem abaixo, olhe dentro de si, onde se supõe que residam astúcia, vontade e poder, ferramentas de que necessitarás para progredir na vida. Acrescente-se "com a ajuda de Deus" e temos algo como a pregação das igrejas evangélicas.

Homens e mulheres não têm mais a quem culpar por seus fracassos e frustrações; e certamente não encontrarão consolo adequado nos seus aparelhos eletrônicos ou telefones celulares. Se não conseguem trabalho, é porque não aprenderam as técnicas para passar nas entrevistas; ou são relapsos; ou não sabem fazer amigos e influenciar influenciar pessoas; ou não souberam "inventar" uma atividade informal. Em suma, a liberdade chegou quando não mais importa. O problema, como vimos, é que o indivíduo é inimigo do cidadão; e a verdadeira política só é viável a partir da idéia de cidadania. Quando os indivíduos se imaginam únicos ocupantes do espaço público, acabou o bem comum; portanto, acabou a política. O público se torna escravizado pelo privado. O interesse público fica limitado à curiosidade pela vida privada das figuras públicas. Se em meio aos assuntos privados dos políticos aparece a perversão, a falcatrua, então é uma festa. A política fica resumida a crônicas de Nelson Rodrigues, e nós comemoramos com o refrão: "São uns salafrários, todos são iguais." Aliás, foi fundamentalmente assim que se ocupou - e se estragou - o espaço político brasileiro no ano que passou.

Estamos criando todas as condições para o esvaziamento do papel das instituições democráticas, já duramente atingidas pela privatização da esfera pública. Não pense que a eletrônica e a Internet têm alguma chance de minorar esse problema. As realidades virtuais não substituem as crenças reais; nelas se entra com muita facilidade para, logo em seguida, perceber solidão e abandono. Bauman diz que o sentimento do "nós" não é oferecido a quem surfa na rede. E Clifford Stoll fala em indivíduos absortos em perseguir e capturar ofertas piscantes do tipo "entre já", perdendo a capacidade de estabelecer interações espontâneas com pessoas reais.

Nas redes virtuais há apenas ilusão de intimidade e simulacro de comunidade. Os espaços públicos estão coalhados de pessoas zanzando com telefones celulares, falando sozinhas em voz alta, cegas às outras ao seu redor. A reflexão está em extinção. Usamos todo o nosso tempo para obsessivamente verificar a caixa de mensagens em busca de alguma evidência de que, em algum lugar do mundo, alguém esteja querendo falar conosco. E, sob pretexto fútil de nos defendermos dos ataques externos, colocamos películas escuras nos vidros dos carros para podermos praticar nossas pequenas transgressões sem sermos reconhecidos. Profunda solidão.

Que o ano novo nos enseje uma breve reflexão sobre a sociedade que estamos construindo. Talvez, como pequeno gesto simbólico de reação, decidamos começar clareando nossos vidros e voltando a nos olhar face na face, como cidadãos - pelo menos no trânsito. Já não seria um bom começo?

(*) Artigo publicado na seção Espaço Aberto do jornal O Estado de S. Paulo de 07/01/2005. Gilberto Dupas é coordenador-geral do Grupo de Conjuntura Internacional da USP e presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI). Autor de vários livros, entre os quais Atores e Poderes na Nova Ordem Global (Unesp)

quinta-feira, janeiro 05, 2006

ARTIGO:

UM BICHO QUE SE INVENTA

Ferreira Gullar (*)

Toda pessoa necessita que as demais pessoas a reconheçam tal como ela acredita que é, tal como se inventa para si mesma. Isto significa que, porque somos uma invenção de nós mesmos, o reconhecimento do outro é indispensável a que esta invenção se torne verdadeira. Por isso, se é certo, como disse Jean-Paul Sartre, que "o inferno são os outros", é certo também que está neles o sentido de nossa existência.

Um recém-nascido não é ainda um cidadão, quase diria que, a rigor, ainda não é gente: trata-se de um bichinho que traz consigo, potencialmente, todas as qualidades que o tornarão de fato uma pessoa. Sim, porque uma pessoa, mais que um ser natural, é um ser cultural.

Certamente, não pretendo dizer que a pessoa não seja o seu corpo material, esse organismo que pulsa, respira e pensa; tanto é que, sem ele, simplesmente ela não existiria, e é nele que repousam todas as qualidades que permitirão o surgimento da pessoa humana que cada recém-nascido se tornará.

Mas não há nenhum fatalismo nisso. Se é verdade que o recém-nascido já possui qualidades e traços próprios que o tornam diferente de todos os outros, não significa que se tornará inevitavelmente o indivíduo X. Não, o que ele se tornará -e é imprevisível- dependerá em boa parte de como assimilará os valores que a educação lhe ofereça. No princípio, o que ele aprende são as normas básicas de sobrevivência e convívio. Só mais tarde conhecerá os valores que absorverá de acordo com suas idiossincrasias, face aos quais reagirá de maneira própria e, assim, irá, passo a passo, se formando e se inventando como ser humano.

A sociedade humana foi inventada por nossos antepassados. Quem nasce hoje já a encontra inventada, material e espiritualmente, com seus equipamentos, valores e princípios que a constituem e definem. É dentro desta realidade cultural, complexa e contraditória, que ele vai se inventar como indivíduo único e inconfundível. Porque cada um de nós quer ser assim: único e inconfundível.

Viver é, portanto, inventar-se: inventar sua vida, sua função no mundo, sua presença. Obviamente, nem todos têm a mesma capacidade de inventar-se e reinventar o mundo. Alguns levam essa capacidade a ponto de mudar de maneira radical o universo cultural que encontraram ao nele integrar-se, como o fizeram por exemplo Isaac Newton ou Albert Einstein, Sócrates ou Karl Marx, William Shakespeare ou Wolfgang Goethe, Leonardo da Vinci ou Pablo Picasso...

Mas a humanidade não é constituída apenas de gênios, que, na verdade, são exceções. Não obstante, todas as pessoas, em maior ou menor grau, se inventam e contribuem para que o mundo humano se mantenha e se renove. Aliás, se os gênios contribuem para a reinvenção do universo cultural -que é o nosso espaço de vida-, a vasta maioria das pessoas é responsável pela preservação do que já foi inventado. Por isso mesmo, a maioria é conservadora e freqüentemente resiste às mudanças e inovações. É que essa maioria não tem noção de que vive num mundo inventado, de que a vida é inventada e de que os valores, que lhe parecem permanentes, também o são. Eles não foram ditados por nenhum ente divino, mas inventados pelos homens conformes suas necessidades e possibilidades. E também, conforme elas, podem ser mudados.

O homem é o único animal que se inventa e inventa o mundo em que vive. A colméia, que a abelha fabrica hoje, tem os casulos da mesma forma hexagonal que tinha desde que surgiram no planeta as primeiras abelhas. Já o habitat humano vem mudando desde sempre, da caverna natural ao casebre, que se transformou em aldeia, povoado, cidade até chegar à megalópole de hoje. O homem, para o bem ou para o mal, mudou a face do planeta, utilizou os recursos naturais para produzir seu mundo tecnológico e dinâmico. Mudou a natureza, alterou o seu funcionamento biológico, meteorológico, sísmico. Seu habitat é primordialmente a cidade, esta complexíssima máquina que só funciona graças à tecnologia que inventamos e desenvolvemos incessantemente.

Quando digo que o homem se inventa, não sugiro que se trata de mera fantasia sem base na realidade . Newton inventou o cálculo infinitesimal, linguagem das ciências exatas, que não existia. A ciência inventou as leis da física, que sempre atuaram na natureza, mas que eram como se não existissem no entendimento humano. As invenções da arte são de outro tipo: Shakespeare inventou a complexidade da alma humana que, se não fosse ele, estaria como se não existisse. Ou seja, a partir da natureza ou de sua imaginação, o homem se inventa e constrói um universo cultural que é seu verdadeiro espaço de existência.

O homem criou também, além do mundo material, além da ciência e da técnica, o mundo simbólico da filosofia, da música, da poesia, do teatro, do cinema. Inventou os valores éticos e estéticos. Inventou a Justiça, embora sendo injusto. E por que, então, a inventou? Porque quer ser melhor do que é, quer -como disse o poeta Höderlin- "ultrapassar o campo do possível". Inventou até Deus, que é a resposta à fatalidade da morte e às perguntas sem resposta. O homem inventou Deus para que este o criasse. Filho dileto de Deus, pode assim aspirar à ressurreição.

(*)Poeta, escritor e crítico de artes plásticas (pintura), o autor tem uma coluna fixa na última página do caderno Ilustrada do jornal Folha de S. Paulo. (Edição de 1°/01/06).

terça-feira, janeiro 03, 2006



EDUCAÇÃO: Diploma com validade em dois países

Já é possível em muitas universidades cursar parte da graduação no exterior e ter certificado das duas instituições


Renata Cafardo (*)

O que era exceção no ensino superior brasileiro há menos de cinco anos o mundo globalizado está fazendo virar exigência. Universidades públicas - e poucas particulares - passaram a oferecer o chamado duplo diploma. Uma parte dos estudos é feita no Brasil e a outra, no exterior, quase sempre numa instituição francesa. O diploma de graduação é assinado pelas duas universidades e vale tanto lá quanto cá.
Os convênios são fechados entre cursos de uma mesma área dos dois países. E prevê troca de estudantes - brasileiros podem estudar no exterior e vice-versa. Mas a proporção de quem vai e quem vem ainda é desequilibrada. Na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), a pioneira na internacionalização, 300 alunos já fizeram parte do curso de Engenharia fora. Os programas existem desde 2001 e, desde então, somente 80 estrangeiros vieram para o País.

"Estamos cada vez mais atraindo alunos de escolas estrangeiras porque vêem os resultados dos nossos alunos lá", diz o presidente da Comissão de Relações Internacionais da Poli e membro da Comissão de Cooperação Internacional da USP, Adnei Melges de Andrade. Ele lembra que os primeiros convênios na Poli ocorreram por iniciativa dos franceses. Hoje, há parcerias com a École Polytechnique e a Écoles Centrales, entre outras.

A mais recente parceria na USP foi fechada pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), em Piracicaba, e a francesa Pari-tech. É o primeiro duplo diploma no País em Engenharia Agrícola e começa neste ano. São cinco vagas para cada lado e só alunos que já completaram o 3º ano podem se inscrever. Assim como nas outras instituições que têm duplo diploma, boas notas e um plano de estudo no exterior qualificam o candidato. "Na França, a agricultura familiar tem alta tecnologia. O Brasil tem culturas tropicais em larga escala. É uma troca de experiência importante", diz a coordenadora do convênio na Esalq, Maria Lucia Vieira.

O duplo diploma também é realidade na Faculdade de Administração, Economia e Contabilidade (FEA) que já oferece até disciplinas optativas em inglês para atrair alunos estrangeiros. "A internacionalização deu um pulo de qualidade na nossa formação", diz a diretora Maria Teresa Fleury. Nas eleições para a reitoria da USP, em 2005, o tema foi um dos mais defendidos pelos candidatos. E a nova reitora, Suely Vilela, quer uma política para incentivar os duplos diplomas.

CAMINHO SEM VOLTA
"A internacionalização é um caminho sem volta e, quanto mais, melhor. Ela desparocaliza a visão de mundo e melhora as chances no mercado de trabalho", diz o presidente da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional da Educação (CNE), Edson Nunes. Os duplos diplomas podem ser oferecidos livremente pelas universidades brasileiras, sem autorização prévia do Ministério da Educação (MEC).

Mas, para Nunes , a estrutura do ensino superior no País dificulta o intercâmbio entre estudantes. "Nossos currículos são engessados em uma formação muito profissional, o que não ocorre em muitos países." Ele explica que nosso modelo é parecido com o de Portugal e o da França, país que tem o maior número de convênios com o Brasil. São hoje dez duplos diplomas franco-brasileiros, a maioria nas áreas de Engenharia e Administração.

O casamento entre os dois países na educação é antigo. Um exemplo foi a vinda de professores franceses para a criação das primeiras universidades do País - a USP teve essa ajuda em 1934. "O aluno francês nas escolas brasileiras tem acesso ao duplo diploma e à dupla cultura", diz Pierre Fayard, presidente do Centro Franco Brasileiro de Documentação Técnico e Científica, ligado ao consulado da França.

TENDÊNCIA EUROPÉIA
O Brasil acompanha hoje uma tendência de internacionalização na educação que começou na Europa, em 1999, com a assinatura do Acordo de Bolonha (ver texto ao lado). Universidades passaram a unificar seus currículos e facilitar o intercâmbio de alunos. A Fundação Getulio Vargas (FGV) vai também se adaptar ao Acordo de Bolonha. Fechou recentemente um convênio de duplo diploma com a HEC, em Paris, uma das grandes instituições de ensino de negócios no mundo. O diferencial é que as duas passarão a oferecer neste ano o que se pode chamar de quádruplo diploma. De acordo com o que pedem os novos currículos europeus na área, os alunos entrarão na faculdade e, com cinco anos de curso, sairão com diplomas de graduação e de mestrado.

"Só o bacharelado nessa área na Europa não serve mais para nada", explica a coordenadora de Relações Internacionais da FGV, Ligia Maura Costa. Os brasileiros farão um ano e meio na HEC e o restante na FGV - o valor da mensalidade será o mesmo. "O aluno poderá trabalhar em qualquer lugar do mundo."

Bruno Oliveira Amorim, de 19 anos, está no 2º ano de Engenharia Mecânica e já entrou na Poli em busca do duplo diploma. Começou a estudar francês, se empenhou para tirar notas altas e participou de atividades extra-curriculares, porque sabia que contariam pontos na seleção. Foi escolhido em 2005 e embarca para a França em julho. "Um diploma francês vai me ajudar bastante", acredita. Bruno ainda não sabe como financiará a viagem - não precisa pagar o curso, mas calcula que gastará cerca de 600 por mês.

Uma das poucas possibilidades de bolsas para brasileiros na França é oferecida pela Capes, mas em número limitado. Bruno agora procura apoio de empresas. Camila Garcia, de 23 anos, custeou suas despesas na França, onde estudou em 2004. Ela conta que cursou disciplinas que não havia em seu curso de Administração da FEA. "Tive uma formação complementar." Camila receberá em breve um duplo diploma e, para isso, teve também seu trabalho de conclusão de curso orientando por professores da FEA e da Euromed.

Na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), os acordos incluem bolsa de 1.100. A procura pelo duplo diploma cresce a cada ano e para 2006 já há mais de 100 inscritos. A internacionalização das instituições começou com programas de intercâmbio. Por meio de convênios, os alunos podiam passar de seis meses a um ano em universidades fora e os créditos podem ser descontados do currículo aqui. Os intercâmbios continuam mesmo depois da adoção do duplo diploma.

"Os cursos aqui têm o mesmo nível dos que fiz na Alemanha", diz o alemão Nicolai Pruesmann, de 26 anos, que estuda na Universidade Técnica de Berlim e, desde agosto, também na FEA. Ele acredita que estudar no Brasil pode ajudá-lo a trabalhar em empresas alemãs que têm filiais aqui.

ANHEMBI TERÁ 100 VAGAS EM 2006
A Universidade Anhembi Morumbi poderá ser umas das grandes universidades privadas a oferecer cursos de duplo diploma no País neste ano, graças à compra de 51% da instituição pela Rede Internacional de Universidades Laureate. O grupo tem 20 universidades em 15 países e alunos da Anhembi poderão cursar parte do curso em uma delas. "A idéia é já poder abrir 100 vagas a partir de agosto para duplo diploma", diz o vice-reitor da instituição, Maurício Garcia. A instituição deve ter também convênios para intercâmbios, em que o aluno passa um semestre fora e aproveita os créditos no curso do Brasil. Outra opção é o licenciamento da marca, ou seja, abrir uma espécie de filial da universidade estrangeira no País. "Poderíamos oferecer aqui exatamente o mesmo curso que a Les Roches oferece na Suíça", explica, mencionando uma importante escola de gastronomia nos Alpes Suíços, do grupo Laureate.

A compra da universidade foi o primeiro grande negócio de investimento estrangeiro na educação superior brasileira. Hoje, não há limites legais para compras. O Ministério da Educação (MEC) tenta mudar esse cenário com a Reforma Universitária. Se o projeto for aprovado, será limitado em 30% o controle estrangeiro de instituições no País.

Na EUROPA, CURRÍCULOS UNIFICADOS EM 45 PAÍSES

GENEBRA - A Europa quer harmonizar o sistema universitário de 45 países até 2010, criando o que já está sendo chamado de o maior campus universitário do mundo. Haverá amplas possibilidades para que estudantes e professores mudem de país com quase a mesma facilidade que trocam de salas de aula em uma faculdade. O objetivo foi traçado em 1998 e estabelece um acordo para tornar semelhantes os programas, os sistemas de créditos e os diplomas de todo o continente europeu, até o fim da década. Os primeiros países a tomar essa decisão foram França, Itália, Reino Unido e Alemanha, que começaram a implementar o reconhecimento dos diplomas. Em 1999, a iniciativa foi acolhida pelos demais países no que ficou conhecido como Acordo de Bolonha. Hoje, a iniciativa já inclui até países que não fazem parte da União Européia, como Suíça, Rússia e Albânia.

O processo se tornou prioridade na Europa nos últimos anos, por causa da concorrência cada vez maior de universidades americanas e asiáticas. Os europeus querem que cada país possa se beneficiar ao máximo do que seus vizinhos produzem.

A União Européia admitiu recentemente que estava ficando para trás quando se fala em qualidade de ensino. A própria Comissão Européia alerta que, das 50 melhores universidades do mundo, apenas cinco estão hoje na Europa. E apenas 21% da força de trabalho no continente tem diploma universitário. Nos Estados Unidos, a taxa é de 38%, no Canadá, 43%, e no Japão, 36%.

Enquanto o novo processo não é finalizado, milhares de europeus já se beneficiam todos os anos dos acordos entre os países e é raro um universitário que não tenha passado alguns meses em outro país da região. Para analistas, isso está criando uma nova geração de europeus, acostumados a viajar e fluentes em mais de um idioma.

QUALIDADE
Quase todos os obstáculos para que estudantes e professores circulem pela Europa já foram retirados e as universidades agora precisam cumprir exigências mínimas de qualidade para poder entrar no processo. A harmonização do sistema não se limita ao reconhecimento de diplomas, mas também de créditos cursados em uma universidade em outro país.

Uma das preocupações passou a ser a qualidade do ensino. Estuda-se a adoção de uma marca para os cursos. Os primeiros devem ser Engenharia e Química e a universidade que cumprir as exigências ganhará uma espécie de selo de qualidade, reconhecido nos 45 países.

(*) Repórter do jornal O Estado de S. Paulo. Matéria publicada na edição de 01/01/06.

PERSONAGEM: Salve, cirandeira Lia!
Poucos a viram ou sabem dançar o ritmo. Mas o País todo ouviu o refrão que a tornou uma lenda

Carlos Marchi (*)

Majestosa, porte de rainha nagô, quase 1,80 metro, sorriso de enormes dentes alvos, brincos, cabelos dreadlock, toda de branco – lá vem Lia, do alto de sua vaidade, comandar a guerra de todo sábado à noite. E vem trazendo na mão o símbolo da sua resistência cultural, o microfone, onde despeja a voz poderosa para desfiar as cirandas da Ilha de Itamaracá, que ela fez famosa. O comando da resistência está acantonado no espaço Estrela de Lia, um privilegiado terreno sobre a Praia de Jaguaribe, com direito a lua espelhada no mar, onde ela reúne os jovens da comunidade pobre do Jaguaribe para dançar a ciranda de roda. A 300 metros, na praça do bairro do Pilar, centro administrativo do município de Itamaracá, reúnem-se os invasores. Seus hinos de guerra são o funk, o axé e o brega descarado, amplificados por dezenas de alto-falantes de bares e de carros estacionados com os porta-malas abertos. São dois mundos opostos – um, alimentado por uma típica e ingênua manifestação de cultura pernambucana, genuinamente acústica, pobre, sustentada pela insistência de alguns abnegados; e outro, massificado pelas mensagens e ritmos eletrônicos, de qualidade discutível e sem nenhum parentesco ou parecença com a cultura regional.

Mas Lia resiste, à luz da mítica aura que a faz conhecida de um País que nunca viu uma foto dela, nunca ouviu sua voz rascante nem sabe como se dança ciranda. Sabe, sim – aí o Brasil inteiro sabe de cor –, o verso-refrão da ciranda mor, que ganhou pernas e saiu galopando pelo litoral: Essa ciranda quem me deu foi Lia, que mora na Ilha de Itamaracá. E assim Maria Madalena Correia do Nascimento, que é Lia como todas as Marias pernambucanas, merendeira da Escola Reunida de Jaguaribe, onde ganha R$ 750 por mês, mantém viva a ciranda-de-roda, sem patrocínio e sem herdeira.

A CIRANDA NASCE
A fama de Lia começou na década dos 60, quando a cantora Teca Calazans, pesquisando no município de Abreu e Lima, vizinho a Itamaracá, recolheu, num pequeno gravador, várias criações do mestre Antônio Baracho, compositor das primeiras cirandas. Entre elas, estava a Ciranda de Lia. A cirandeira Lia também aprendeu cirandas com Baracho, mas insiste em que a Ciranda de Lia nasceu quando, numa manhã de 1962, na Praia de Jaguaribe, ela solfejou a música para Teca, que depois colocaria a letra. De Paris, onde vive desde 1969, com alguns hiatos no Brasil, Teca abdica da glória de ser autora da letra de uma canção tão conhecida no País e revela que recebeu a Ciranda de Lia pronta de mestre Baracho.
Estava na beira da praia
Ouvindo as pancadas das ondas do mar,
Essa ciranda quem me deu foi Lia,
Que mora na Ilha de Itamaracá

Teca foi responsável, isso sim, por ter divulgado a canção pela primeira vez, ao incluí-la em seu primeiro disco, pelo selo Mocambo/Rozemblit, que tinha uma seleção de cirandas em um dos lados. Entre elas, destacava-se a beleza melódica da Ciranda de Lia, à qual Teca atribui um refrão ligeiramente diferente daquele que se canta hoje em Itamaracá:
Eu tava na beira da praia,
Ouvindo as pancadas das ondas do mar,
Essa ciranda quem me deu foi Lia,
Que mora na areia de Itamaracá”

Na areia da Praia de Jaguaribe, semi-analfabeta, aos 62 anos (que completa no dia 12 de janeiro), Lia – que viveu a vida inteira no bairro do Jaguaribe, uma comunidade pobre de pescadores no oeste da Ilha de Itamaracá – canta ciranda desde menina, exaltando os pescadores, as ondas, a lua. Atribuem a ela poderes espirituais – seria uma ialorixá. Fisicamente a especulação faz sentido: em tudo e por tudo ela ostenta um perfeito physique du rôle.

Lia ri franco, aberto – nem nega nem confirma. Pelo sim, pelo não, só canta com um colar de contas azul-claras e brancas, numa óbvia reverência a Iemanjá; no jardim de sua casa, próximo ao Estrela de Lia, o lugar mais nobre, acasalado por uma árvore, abriga uma efígie da mãe das águas cercada de pequenas lampadinhas que ela mantém acesas durante as noites. E confessa: é filha legítima de Iemanjá, por um lado, e amiga do padre, por outro. O sincretismo resolve a questão e ela cumpre à risca o trato feito com o cura: o espetáculo no Estrela de Lia só começa depois que acaba a missa noturna na igrejinha da Praia de Jaguaribe.

VIDA DURA
Sobreviver esse tempo todo foi uma dificuldade que Lia narra com resignação. Depois que casou com Toinho, seu marido até hoje, a vida foi muito difícil. Ela era famosa e requisitada, mas não conseguia ganhar quase nada com suas apresentações, até porque uma apresentação de ciranda tinha, necessariamente, de contar com um grupo grande de artistas, cuja locomoção era sempre cara. Quando Lia se casou, Toinho era porta-estandarte do maracatu Elefante, um dos grandes de Pernambuco, e se apresentava no reisado da Bomba do Eleutério. Ele insistia em arrastá-la para o carnaval e para os festejos do reisado; ela sempre recusava. Até que um dia cedeu e fez uma grande descoberta: o carnaval é um prazer quase igual ao de cantar ciranda.

Mas as coisas continuavam mal; sobrava alegria, mas faltava dinheiro. Só começou a melhorar mesmo quando, há mais de 25 anos, depois de muito pedir, ela conseguiu ser nomeada merendeira; continuou pedindo e ganhou o reconhecimento da prefeitura de Itamaracá, que a nomeou para um cargo honorífico, uma espécie de embaixadora da ilha que ela tanto ajudou a tornar conhecida. E não foi nomeada merendeira só de favor. “Ela é uma cozinheira de mão-cheia”, diz Beto, amigo que faz as funções de empresário da ciranda. Todos os que a cercam confirmam: Lia é a rainha dos frutos do mar. Seria uma sorte para os 270 meninos da escola onde ela trabalha, não fosse ter de repetir macarrão todos os dias, à falta de ingredientes mais saborosos. Durante muito tempo ela foi dublê de cozinheira e cantadora de ciranda em um restaurante da ilha que acabou fechando.

Hoje as duas funções lhe dão R$ 1.500 mensais, o que lhe permitiu juntar dinheiro para comprar a área onde instalou o Estrela de Lia, um espaço na beira da praia, entre coqueiros, dendês e cabeças-de-negro, com palco, algumas barraquinhas para venda de bebidas e salgadinhos e uma grande oca no meio, coberta de sapê e com piso cimentado, onde giram as rodas de ciranda.

O show começa sempre às 21h30 dos sábados e as coisas acontecem de forma surpreendente. Às 21 horas, o Estrela de Lia conta apenas com alguns gatos pingados; na hora marcada, já chegou um pouco mais de gente, mas nada que seja muito melhor que um rotundo fracasso. De repente, aos primeiros acordes da banda, surge gente de todos os lados, em grupos, como se esperassem apenas a senha para vir correndo e entrar na dança. Daí em diante, ninguém mais arreda pé até a 1 hora da madrugada, quando Lia encerra a encenação.

No Estrela de Lia ela instalou uma oficina de música, onde 15 meninos e meninas aprendem a dançar e a tocar ciranda. A escolinha parou há algum tempo por falta absoluta de recursos. Ela sonha com um espaço do Projeto Ponto de Cultura, patrocinado pelo governo estadual, que permite oferecer oficinas em barro e informática, além do ensino de percussão. Enquanto corre atrás de novos patrocínios, Lia fatura um extra transformando o Estrela de Lia em bar da praia durante o dia, alugando espaços para turistas. É um uso pouco nobre para o terreiro da ciranda, ela reconhece, mas necessário para equilibrar as finanças.

Lia agora aguarda o resultado de uma seleção que está sendo feita pelo governo de Pernambuco para saber se será um dos personagens do projeto Registro Patrimônio Vivo, que premia com uma pensão mensal artistas e grupos pernambucanos que tenham contribuído decisivamente para a cultura regional. Não será difícil para Lia, que vive há 40 anos na memória do povo brasileiro, ser reconhecida como uma referência da cultura pernambucana, até porque ela já recebeu, em 2004, a condecoração maior, a Ordem do Mérito Cultural do Ministério da Cultura.

CORRENDO MUNDO
A cavalo na fama, Lia correu mundo. Cantou em Paris e Berlim. Viaja muito pelo Brasil e em todos os lugares a referência é sempre o refrão que a identifica e à ciranda. Mas lugar nenhum a impressionou tanto quanto o Rio de Janeiro, onde se sentiu como se estivesse “em casa”. “Lá tive vontade de ficar nas praias cantando ciranda para os cariocas dançarem sem parar”, relembra, saudosa. Ninguém ia estranhar de vê-la assim: quando canta, Lia lembra duas cariocas singulares – Clementina de Jesus, pelo porte, e Carmen Costa, pelo timbre.

A cirandeira Lia, que tentou ser mãe quatro vezes e perdeu as quatro, não tem herdeiras, nem na vida nem na ciranda. “Desisti. Era porque Deus e Iemanjá não queriam”, diz entre a desolação e o conformismo. É curioso que Lia, sem filhos e sem herdeiros na arte, consiga atrair predominantemente jovens adolescentes do bairro do Jaguaribe, mais meninas que meninos, aos espetáculos do Estrela de Lia; nenhuma delas, no entanto, se interessou em aprender a cantar. E como vai ser? “Não sei. Nem me importo. O que me importa é que, se você fizer um show de axé, esses meninos vão dançar como se fosse ciranda”, se gaba. E, do palco, ela desafia, cantando os versos de Edu Lobo: Cirandeiro, cirandeiro ó, a pedra do seu anel brilha mais do que o sol. A garotada sabe de cor e acompanha a canção inTeira, sem errar um verso.

Muitos dos jovens não cantam, mas se esmeram em inventar passos para atualizar a evolução da ciranda. Todos cantam junto com Lia as canções que Baracho compôs há muito, numa adesão que transpõe épocas. Embora a dança seja ainda tradicional, em roda girada no sentido anti-horário, todos de mãos dadas, os adolescentes criam movimentos cheios de ginga nova e acrescentam passos para trás, que a ciranda original não tem. A composição da roda não se preocupa em intercalar homens e mulheres; as pessoas entram na roda sem questionar a quem vão dar as mãos. Por alguns momentos, chega a ser exótico ver inquestionáveis machos nordestinos dando as mãos a outros homens, ignorando possíveis preconceitos e fazendo prevalecer a diversão ingênua e alegre.

Lia ainda abre o leque: em suas apresentações, não canta apenas cirandas; também inclui cocos. E, curiosamente, nos cocos, de marcação completamente diferente, bem mais apimentada, muitas pessoas continuam dançando a roda da ciranda, embora os mais hábeis arrisquem passos semelhantes à capoeira, originais na dança do coco. Ela também canta pastoris, maracatus e, se pedirem, cavalos-marinhos e até frevos, sem limitações; e ainda divide o seu palco com dona Célia Coquista (de “coco”), que aos 70 anos exibe a energia de um Jackson do Pandeiro redivivo, e com as Filhas de Baracho – Dulce e Biu (Severina) –, que interpretam as cirandas do pai.

Toda de branco, saia rodada com debruns coloridos, sandálias de couro cru, ornada por pulseiras, brincos e colares, Lia fecha sua apresentação depois da meia-noite, depois de desfiar várias cirandas que falam nela. Essa ciranda eu tirei de Lia, que não sabia que estava no seu olhar, diz uma; Eu sou Lia da beira do mar, morena queimada de sal e de sol da Ilha de Itamaracá, diz outra. E o refrão do fecho é de estrela: Adeus, meus amores, Lia vai dormir. Bons sonhos a guardem, rainha Lia das areias de Itamaracá.
(*)Repórter do jornal O Estado de S. Paulo. Matéria publicada no caderno Aliás, de 25/12/2005